Capítulo II – Um novo amigo, as suas histórias e as suas lições

Segundo capítulo da história do Frango independente que fugiu da capoeira por recriação própria. Espero que gostem!

Subiram novamente para o passeio e começaram a caminhar na direção indicada pelo gato, que parecia super energético e movia-se a uma velocidade relativamente grande.
— Tem calma, que as minhas patas não são ágeis e fortes como as tuas.
— Ao menos reconheces. — disse o gato, com o seu ar imponente do costume. Depois olhou para o frango, que lhe fazia uma cara a dizer “a sério?” e revirava os olhos. — Está bem, pronto, mas vamos então ao que interessa. Vou contar-te de quando passei fome pela primeira vez. Então, eu sou um gato de rua, como tu vês, e nunca tive uma vida completamente digna de um gato como eu. OK, OK, eu tive de aprender a dar valor a mim mesmo, porque não tenho ninguém que me ame. — admitiu o gato, com o olhar focado no chão. Abrandou por um bocado, e o frango, que já estava a ter outra vez a mesma reação de revirar os olhos, ficou com pena do gato. Sabia que a dona não o adorava como tudo no mundo, mas gostava dele e dava-lhe carinho e tempo. E isso já era muito para ele. Talvez não soubesse o que era ser amado como família, mas sabia o que era a falta de carinho e de atenção, quando a dona saía e ele ficava entregue aos frangos mais velhos, que tentavam picá-lo por também ser macho.
— Eu dou-te valor. Sou só um frango indefeso e esfomeado, e saíste do teu caminho para me ajudar. Isso demonstra simpatia e compaixão.
— Obrigado. — agradeceu o gato. Olhou para ele com uma cara um tanto comovida, mas depois olhou para a frente e continuou a sua história. — Mas pronto, então, eu comia ratos que caçava, e pássaros que apanhava, e erva-de-gato, como é óbvio, e, já agora, este terreno está cheio dela. Ah, também comia alguns croquetes de algumas pessoas que me davam quando eu ia a casa delas. Nunca deixei que ninguém me adotasse, quero ser selvagem. Sempre fiz tudo isto, desde que sou selvagem.
— Tu já foste doméstico?
— Eu… sim. Nasci de uma gata que uma senhora idosa tinha. Ela emprenhou e a senhora não reparou logo. Só umas semanas antes de eu nascer é que ela reparou. Dessa vez só me teve a mim, era o seu único filho. Por isso nunca brinquei com gatinhos bebés da minha idade quando era pequeno, só com a minha mãe. Quando eu a larguei e comecei a ficar um gato jovem, tipo adolescente, já completamente independente, porque eu ganhei independência muito cedo, ela deu-me a uma senhora da casa dos quarenta anos, que tinha uma filha adolescente que queria muito ter um gato. A mãe, Ana, falou nisso à senhora Helena e ela deu-lhe um gato, eu. A senhora Ana não me queria, e então fez prometer à filha Filipa que tomava conta de mim e assumia a responsabilidade. A Filipa estava muito contente por ter um gato, e então prometeu e tomou conta de mim durante imenso tempo. E foi durante esse tempo que eu descobri o que é ser amado. Ela levava-me para a escola para não me deixar sozinho na rua, porque a mãe dela não gostava de animais dentro de casa sem supervisão. Os colegas dela faziam-me mimos e eu era sempre o centro das atenções. Ainda não era adulto e sentia-me o gato mais feliz do mundo. Mas a filha da minha dona tinha imenso trabalho, porque a mãe obrigava-a a limpar a casa por causa do pêlo que eu largava. Até que um dia, quando ela entrou para o secundário, com todas as atividades que ela tinha na altura, música, dança, clubes de fotografia, desenho, teatro, e ainda aulas de pintura, para além das limpezas do chão e cuidar de mim, a Filipa não conseguiu aguentar a pressão e simplesmente adormeceu em cima dos livros quando estava a estudar para o teste do dia seguinte. Acordou sobressaltada com um grito da mãe, que recebera uma chamada da professora a dizer que ela não fazia os trabalhos de casa há uma semana. Levou um raspanete de meia hora enquanto se vestia à pressa, pois já estava atrasada para a escola, e ainda ouviu mais quando a mãe descobriu que ela que não tinha limpo o chão no dia anterior, pois ela estava a espirrar muito. Sim, a senhora Ana não reagia muito bem ao pêlo de gato, por isso é que pôs a filha a limpar, uma vez que foi ela que me quis. Então ela foi para a escola a chorar e sem mim. A senhora Ana pegou em mim, e eu lembro-me que comecei a miar para voltar para os braços da Filipa. Mas a mãe disse que tomava conta de mim enquanto ela estava na escola porque via que ela estava sobrecarregada e que eu estava a dar muito trabalho. Ela disse que não, que o problema não era eu, e que as aulas de dança eram cansativas e que o clube de teatro desgastava muito a cabeça. Mas a mãe não a deixava aliviar a carga horária. E, nesse dia, quando ela foi para a escola, pegou no carro e veio deixar-me ao lado da escola secundária de Vale de Cambra. Ela morava em São João da Madeira, e então eu preferi nem sequer tentar voltar para casa e ficar selvagem. Fiz a minha vida aqui e agora estou a contar a minha história de vida a um frango que conheci há uns minutos. Não quero voltar a ser doméstico, as pessoas são más e abandonam os animais sem eles terem culpa. A senhora Ana era mesmo má e exigia muito da filha. Sempre tive pena da pobre Filipe, que passou a sua infância em atividades e a trabalhar para ter as excelentes notas que tinha na escola. E ainda cuidava de mim. A Filipa é a única pessoa em quem confio e que sei que nunca me abandonaria. Ela ama-me como qualquer animal merece ser amado por alguém.
— Não sabia que tinhas uma história tão bonita por trás…
— Pois. Infelizmente ninguém sabe. Agora queres saber então sobre a primeira vez que passei fome?
— Sim.
— Então ouve. Foi uma vez em pleno inverno, quando deu um nevão. Eu tinha decidido que queria explorar o mundo, foi uns meses depois de me abandonarem. Então fui para a Serra da Freita, completamente sozinho. Comi bastantes ratos antes de ir, e quando fui estava muito frio. Andei por lá, cacei uns ratos mais gorduchos que por lá andavam, e quando estava a comer um senti frio no pêlo. Olhei para cima de mim e estava a cair neve por todo lado. Estava longe de casa, e decidi começar a caminhar. Mas a neve foi subindo, e eu não estava habituado àquelas temperaturas. As minhas patas estavam frias, e eu não conseguia aguentar mais o frio. Fui obrigado e subir para cima de uma árvore e a enfiar-me num buraco com dois esquilos. Controlei-me para não os comer e fui simpático. Eles receberam-me bem, e aqueceram-me quando ganharam confiança. Passadas umas duas horas, o nevão já estava a parar, mas eu estava cheio de fome e longe de casa, e a neve continuava lá no chão. Os esquilos queriam ajudar, mas só ofereciam nozes. Então eu esperei que o nevão parasse, e depois comecei a caminhar pela neve. Estava gelado quando saí dali, e soube que saí porque a neve foi ficando cada vez menos espessa à medida que eu andava. Até que cheguei a uma estrada que já só tinha possas e gelo, e aí sabia o resto do caminho e continuei a caminhar. Quando, vindo do nada, um carro chegou a derrapar e bateu numa árvore ao lado do sítio onde eu me encontrava. Cheio de medo, dei um salto e o meu pêlo ficou todo eriçado. Ainda tive mais frio e já estava cheio de fome. Dei uma corrida para aquecer e rapidamente cheguei a casa. O que vale é que os passarinhos estavam no chão a comer sementes e eu pude apanhar uns quantos. Deliciei-me e comer nunca me soube tão bem. E, como vês, também já passei fome. Claro que nunca mais me voltei a aventurar assim sozinho sem plano B e sem provisões, foi um erro da minha parte. O que interessa é que aprendi com ele, e é por isso que temos de errar para aprender.
— O erro é natural. A natureza não é perfeita. Quem não erra é porque não tenta e não faz. Eu nunca tive oportunidade. Agora que tenho quero experimentar tudo o que esta nova vida tem para me dar.
— Incluindo comer o que gostas como quiseres, porque tudo sabe melhor quando somos nós a preparar. Chegámos!
À sua frente estava um enorme campo com plantas do milho, cada uma com uma espiga dourada na ponta, enrolada em folhas compridas e verdes.
— Onde está o milho? — perguntou o frango. O gato desceu a erva até ao campo, dobrou uma planta com o seu próprio peso quando se pendurou nela e cortou a espiga com as garras. Depois desembrulhou-a e mostrou-a ao frango.
— Aqui.
— E tenho de fazer isso com todas?!
— Pensavas que era fácil ser selvagem? Já não tens comida a cair do céu.
— Obrigado, gato, o que faria sem ti…
— Procurar grãos de milho e feijão cozido no chão?
— Pois, sim… A propósito, tiveste alguém a ensinar-te como ser selvagem?
— Não, nós os gatos temos instinto natural. Vocês frangos passaram demasiadas gerações em cativeiro e perderam o vosso.
O frango pareceu indignado e um tanto ofendido, tal foi o olhar que lançou ao gato.
— Sem ofensa, são factos cientificamente comprovados. A culpa não é vossa, mas sim de quem vos domesticou.
— Pois… É frustrante saber que nos tiraram a liberdade e a capacidade de sobreviver num ambiente selvagem.
— Acredito. Os cães foram iguais a vocês. Também já foram selvagens.
— A sério?
— Sim, tens muito para descobrir. Nós gatos fomos exceção. Já agora, de onde achas que vieram essas asas que não consegues usar para voar.
— De quando a nossa espécie era selvagem? — perguntou o frango, espantado, com a asa levantada e a olhá-la fixamente.
— Sim. Aposto que a tua espécie voava.
— Quando?
— Derivas das perdizes.
— Aqueles pássaros lindos?! Não parece nada…
— Evolução. A Natureza é cheia de mistérios por descobrir, não é?
— Parece que sim. Eu adoro.
— O mistério que me intriga mais neste momento é como é que um gato e um frango se conseguem dar bem.
— É verdade, como te chamas? — perguntou o frango, com um tom sério. O gato pareceu um bocado atrapalhado.
— Uh… sabes que mais? Agora sou selvagem. O meu nome é Gato.
— Nesse caso eu sou o Frango e ainda tenho fome.
— Então deixa-me explicar-te como se faz para colher o milho. Observa e aprende. — disse o Gato. Subiu para cima uma das plantas, que se dobrou imediatamente, e caminhou até à ponta, que literalmente tocou no chão. — Trepas a planta ou penduras-te nela, como eu fiz à bocado, e depois identificas a espiga e corta-la rente. Assim. — explicou, ao mesmo tempo que cortava delicadamente a espiga com a unha comprida e afiada.
— Uau! E isto não é grande demais para eu comer? Davam-me farinha disto, e agora percebo porquê… — questionou o Frango, um pouco espantado.
— Mr. Frango, sempre a complicar! — lamentou-se o Gato. Pensou por uns segundos, enquanto olhava em seu redor. Depois sorriu instantaneamente. — Já sei! Tive a ideia mais revolucionária da história! — gritou o Gato, num tom de voz muito alto. Depois começou a correr de um lado para o outro, sempre atento ao chão.
— E… que ideia é essa? — quis saber o Frango, intrigado. — Um moinho para moer a farinha? Um… moinho que mói a farinha sozinho?! — exclamou, excitado com a ideia.
Até que o Gato volta a rebolar uma pedra enorme e pára à sua frente com um sorriso eufórico.
— A sério, uma pedra? — disse o Frango, desiludido e num tom que transmitia aborrecimento. Revirou os olhos e voltou a fixá-los na “ideia revolucionária” do Gato. — Eu nem sequer consigo pegar nisso! É demasiado pesada e vai arranhar as minhas penas todas. — resmungou o Frango, e passou o bico nas penas que tinham sido estragadas pelo carro, para as alinhar. Depois fez uma expressão facial de repulsa, e começou a lamber a erva.
— Que se passa? — perguntou o Gato, deixando escapar um risinho.
— As minhas penas sabem a fumo. — explicou o Frango, com um ar de total desagrado. — E agora o meu bico sabe a erva. Tu disseste que comias erva-de-gato?
— Yup.
— “Yup”?! É mais “eww”…
O Gato não conseguiu evitar rir-se.
— São gostos. — disse. — A Natureza quer que nós gatos gostemos de erva porque precisamos dela.
— É. A Natureza é fantástica.
— Frango, acabaste de sair da capoeira e ainda só viste a tua região. Quando estiveres dentro da casa de alguém vais descobrir outro estilo de vida. És como um gatinho que acabou de abrir os olhos. Tem calma, sei que agora é tudo excitante para ti, mas agora vais construir o teu estilo de vida, e com as experiências que vais viver serás capaz de escolher aquele com que te identificas mais. E eu estarei sempre aqui para te ajudar.
— Obrigado, Gato. Mas agora podes mostrar-me a tua ideia para fazer farinha de milho? É que eu ainda tenho cada vez mais fome…
— OK. — começou o Gato. — Observa e aprende. Primeiro, tens de tirar a espiga da planta, assim. — explicou, enquanto exemplificava. Com a espiga deitada no chão, pousou a pata esquerda da frente na espiga dourada escondida pelas folhas verdes e a direita no caule partido que já fizera parte da planta do milho. Depois pressionou a planta para evitar que esta saísse do sítio e moveu para a esquerda a pata que segurava na espiga através de uma abertura nas folhas que a abraçavam. Esta deslizou no momento em que se separou da planta que lhe dera origem. — Vês? Fácil! — exclamou o Gato, e continuou a explicar. — Agora só tens de debulhar a espiga, usando mais ao menos a mesma técnica. Seguras a espiga com uma das patas, ou no teu caso, uma das asas, e com a outra empurras os grãos de milhos para que estes se soltem da espiga. — continuou, pondo o seu método em prática para provar que funcionava e para ensiná-lo ao jovem Frango. Um grão de milho soltou-se da espiga com um estalido e caiu no meio de um tufo de erva, enquanto a sua superfície lisa refletia a luz do Sol.
— Hum… Continua a ser um bocado para o grande, não achas? — perguntou o Frango, parecendo confuso.
— Ainda não acabei! Agora espera e ouve. — disse o Gato, e estava a recuperar o fôlego para continuar com a sua explicação no momento em que o Frango tomou a palavra.
— Espera e ouve?! Diz isso ao meu estômago…
— A sério, Frango, tens mesmo de aprender a ser paciente. Viste como apanhei aquele rato, mesmo antes de começar a falar contigo para te transmitir os meus inteligentes ensinamentos sobre um estilo de vida selvagem? Se me tivesse precipitado o meu almoço fugiria a correr (literalmente). — aconselhou o Gato. — Sim, porque já ouviste aquela expressão de “A comida não foge.”? Pois, é mentira; aqui ou tomas a atitude certa ou ela foge, seja “fugir” de “correr pela vida” ou “fugir” de “desaparecer porque outro animal qualquer decidiu garantir que a fome não seria um problema para ele nas próximas horas”.
— Exato… Nunca imaginei que fosse assim…
— Ainda tens muito que aprender, jovem frango. Mas eu terei todo o gosto em acompanhar-te nesta caminhada que te permitirá conheceres o mundo que te rodeia e saberes viver nele, adaptando-te ao ambiente e às situações e desafios que a vida de proporcionar.
— Pois, pois, obrigado. Mas agora gostaria que me ajudasses a sobreviver a essa caminhada, terminando a explicação do processo pelo qual o milho deve passar antes de o comer. — focalizou o Frango. Quando se trata de comida, quem não gosta de ir direto ao assunto?
— OK, então permite-me que exemplifique. — recomeçou o Gato, enquanto colocava a pedra e o grão de milho lado a lado. Depois usou todas as suas forças do gato ágil que era para elevar do chão o pesado calhau o número de centímetros suficientes para passar acima do pequeno grão. Durante a demonstração da sua “ideia revolucionária”, o Gato lutava constantemente para conseguir falar e suportar o peso da pedra simultaneamente, pois o fôlego parecia-lhe insuficiente, o que o impedia de adquirir uma linguagem clara e de fácil compreensão. — Depois… fazes… assim… e tentas… tipo… esmagar o… grão…. Assim! — tentou explicar o Gato, e gritou “Assim!” enquanto largava a pedra mesmo por cima do grão. Ouviu-se um estalido quando a pedra o esborrachou, e quando o Gato fez a pedra rebolar para o lado, a casca exterior do grão estava estalada. — Vês? Assim já deves conseguir comê-lo. Experimenta. — sugeriu ao seu amigo esfomeado.
O Frango, radiante, não conseguiu tirar os olhos do pequeno grão que, naquele momento, parecia ter adquirido o brilho característico do ouro. Pelo menos para aquele jovem frango, que o via como um tesouro. Atirou-se a ele e usou a pequena fenda na casca para esgravatar com o bico até ter devorado todo o grão.
— Que bom! Já não me lembrava que comer era tão fixe! Mas um grão não me tirou a fome…
— Óbvio que não! — exclamou o Gato. — Tens noção da quantidade de grãos necessários para fazer a quantidade de farinha suficiente para te encher o comedouro apenas uma vez?
— Não…
— Pois, então não queiras ter. Imagina apenas um monte de cinco a dez espigas inteiras.
— Inteiras?!
— OK, talvez esteja a exagerar. Por volta de cinco espigas.
— Mesmo assim é muito… Isso explica muita coisa…
— Pois, tipo porque é que ainda continuas esfomeado depois de UM grão de milho?
— É…
— Agora temos é que debulhar e esmagar esta espiga inteira. Vamos a um trabalho de equipa? Eu esmago e tu debulhas.
— Claro que sim. — concordou o Frango. E puseram mãos à obra.
Não foi preciso dizer duas vezes. O Frango apenas apanhou o jeito depois de inúmeras tentativas desesperadas para debulhar o milho. Mas, como não tinha grande força nas asas, só considerou uma vitória total quando começou a usar as patas, cujas unhas afiadas foram de muita utilidade na tarefa. Aprendeu a enfiá-las entre os grãos de milho para os empurrar para fora da espiga, um trabalho de precisão e que requereu algum treino e principalmente tempo. Mas, quantas mais vezes repetia, melhor o fazia e mais depressa o realizava. Numa hora, debulhou sete espigas, tendo demorado aproximadamente dez minutos nas primeiras que debulhou e cinco nas últimas.
O Frango comeu aproximadamente três quartos de uma espiga, e depois ficaram a debulhar mais espigas e a esmagar grãos por mais duas horas. Até que, quando acabaram, ao fim das três horas, de debulhar a vigésima oitava espiga, o Gato se lembrou de um pormenor.
— Frango, importas-te de vir aqui?
— Que se passa?
— Eu não vou ficar o resto da tua vida contigo, por isso convém que saibas fazer tudo sozinho. Consegues deitar esta espiga abaixo da planta? É que fui eu que apanhei as espigas todas hoje. — perguntou ele, apontando com a pata da frente do lado esquerdo para uma planta imponente de milho que, como quase todas as outras que ainda estavam de pé, guardava uma espiga cor-do-Sol.
— Não sei… — respondeu o Frango, hesitante. — Deixa-me tentar.
Aproximou-se da planta, e tentou subir para cima dela para a dobrar. Mas, para além de ser muito leve, não dominava o corpo como o Gato e o seu equilíbrio não era suficiente para que se mantivesse de pé ou até agachado em cima da fina planta. Então decidiu mudar de estratégia, mas também não foi capaz de se pendurar na planta, pois não a conseguia dobrar e, independentemente da posição do caule relativamente ao solo, sempre que tentava segurar a planta fosse de que maneira fosse, as penas das asas escorregavam pelo caule e o cenário final era sempre o Frango no chão e a planta de pé.
— Pois… — disse o Gato, pensativo, enquanto o Frango tentava pela trigésima vez sem sucesso uma das estratégias, desta vez puxar a planta com quantas forças tinha. Mas não conseguia agarrar firmemente na planta e acabou novamente no chão.
— Gato, achas que consigo cortar o caule com as minhas unhas? — perguntou o Frango, já a ficar desesperado e aberto a quaisquer sugestões.
— Tenta. — sugeriu o Gato, virando-se para o Frango. Este tentou, mas a planta era demasiado grossa e percebeu ia demorar uma eternidade apenas a triplicar o pequeno golpe que conseguira fazer na planta durante um minuto inteiro.
— Não dá. — lamentou-se o Frango. — Eu não sou capaz.
— Cortar…. — repetia o Gato, aparentemente sem prestar atenção às lamúrias do Frango. Parecia determinado a encontrar uma solução. — Cortar…
O Gato olhou em volta virando energicamente a cabeça, à procura de uma solução no meio do terreno. O Frango percebeu que a encontrara quando os seus olhos verdes vivos brilharam e um sorriso apareceu repentinamente no seu focinho, afastando os bigodes mais do que o habitual. O Gato saiu disparado a correr. Apanhou uma cana já meia seca comprida, tirou-lhe as folhas amarelas e começou a correr o mais depressa que conseguia com ela na boca até chegar ao sítio onde se encontrava um vidro castanho semi-enterrado, perto do passeio, que outrora fizera parte de uma garrafa de cerveja que provavelmente havia sido atirada para o campo depois de vazia. Voltou novamente ao outro canto do terreno a correr com as duas coisas na boca e pousou-as para apanhar uma folha de piteira grossa e resistente. Apressou-se a voltar para a beira do seu amigo, onde usou as unhas aguçadas e bem tratadas para fazer uma ranhura na ponta ainda verde da cana, paralela à sua extremidade e a uns dois centímetro desta. Depois enfiou o pedaço de vidro triangular curvado na mesma extremidade da cana oca, até este fazer pressão nas paredes da cana. Finalmente, passou a piteira pela ranhura e depois deu a volta ao vidro pelo lado oposto. Repetiu o movimento várias vezes, com a ajuda das quatro patas à vez, das garras, da boca e dos dentes afiados. Quando chegou à ponta oposta da piteira, o Gato esforçou-se por dar um nó o mais fixo e resistente possível, e depois prendeu a ponta da piteira numa das voltas que já tinha dado com a mesma. Assim que terminou, agarrou a sua engenhoca com a boca e exclamou o mais claramente que conseguiu:
— Taran!!! E aqui eztá a holuchão bara todoz oz teuz broblemaz!
— Uau! O que é? — perguntou o Frango, entusiasmado. O Gato pousou a sua engenhoca no chão e fixou-a com o olhar enquanto falava.
— Vou batizá-lo de “Corta-Milho”! O que achas?
— Espetacular! E serve… para cortar o milho?! — adivinhou o Frango, cada vez mais excitado com a ideia de ser independente.
— Como o próprio nome indica. — afirmou o Gato. E voltou a olhar para o Frango. — Não é preciso ser-se um génio para perceber isso. — esclareceu. Depois pegou na sua invenção novamente com a boca e dirigiu-se à pobre planta de milho que fora escolhida para cobaia das experiências e tentativas falhadas do Frango que, de tão intrigado que ficara com a correria do Gato, cessara de tentar tudo exceto perceber o que se passava com o seu amigo. Compreendeu assim que o Gato balançou o Corta-Milho com a lâmina de vidro no ar, cortando o caule da planta em plena queda e com um corte limpo e seco, de uma só vez. Os olhos amarelos do Frango brilharam de excitação quando o Gato olhou para ele com um sorriso tão grande que fazia com que alguns dos seus bigodes quase se enfiassem nas grandes orelhas.
— É a tua vez. — anunciou o Gato.
— Estou tão contente! — exclamou o Frango. Pegou com as asas no Corta-Milho que o Gato deixara no chão à sua frente, segurou-o na vertical e tentou manipulá-lo para que este cortasse a planta. Após algumas voltas, lá conseguiu acertar com o caule e a parte de cima da planta com a espiga caiu no chão.
— Fantástico! — gritou o Gato. — Afinal, apesar de vocês frangos não terem sido compensados com capacidades físicas, debaixo desse monte de penas e dessa crista vermelha existe alguma coisa a trabalhar. E acredita em mim quando digo que essa cabeça é capaz de fazer muito mais para além de agitar um pau no ar, só precisas de um bocadinho de treino para fazeres tudo o que quiseres.
— Achas?! — exclamou o Frango, ainda mais entusiasmado.
— Habituaste-te depressa à vida selvagem, vais ver que daqui a umas semanas vais estar a desenrascar-te como um gato não tão bom como eu, mas quase. — afirmou o Gato, todo confiante e orgulhoso de si, como sempre.
— Obrigado? — agradeceu o Frango, um pouco confuso. Mas começava a perceber a essência daquele gato, e de alguma forma a achá-la interessante. Sabia que por trás daquele ar imponente e orgulhoso estava escondido um lado um tanto sensível e muito atencioso do Gato, que ele revelava apenas em algumas situações através de determinadas atitudes e reações. Mas a forma como ele era alegre e engraçado dava claramente para perceber que o Gato não fazia aquilo por maldade; era apenas caráter e fazia parte da sua maneira de ser. Lá no fundo, o Frango sabia que aquilo o tornava único e especial, e que o seu amigo tinha um coração enorme, incapaz de passar indiferente a qualquer situação em que possa ser útil (talvez ensinar um jovem frango a ser selvagem, mesmo que tenha de passar horas com ele a cortar e a tratar o milho para que o Frango o possa comer).