Capítulo I – Fuga da capoeira

Uma história de aventura e luta pela sobrevivência que começou quando o meu irmão me pediu que lhe contasse uma história. Eu pedi-lhe que escolhesse um animal, e ele lembrou-se, sabe-se lá como, do frango.

Espero que gostem do primeiro capítulo da história, e vou colocando os restantes à medida que a for escrevendo.

Obrigada!

Capítulo I – Fuga da capoeira

  Num concelho situado num vale verde havia uma senhora velha, que vivia na sua casa com o seu marido e os seus animais. Tinha gatos para lhe apanharem os ratos, galinhas para dar ovos, e coelhos, frangas e frangos, que criava para vender. A sua cozinha encontrava-se separada do resto da casa e era ligada diretamente ao exterior, onde andavam os gatos a passear e as galinhas a desenterrar bichos e plantas, quando lhes era dada a liberdade, o que acontecia normalmente uma vez por dia.
  Até que um dia, na capoeira onde estavam os habituais dezasseis frangos que costumava comprar, um deles tomou consciência do que se estava a passar quando viu o seu ex-companheiro a ser vendido a uma rapariga jovem pela senhora idosa que considerava sua dona. Tomou então a decisão da sua vida, e completamente sozinho baseou-se na sua rotina diária e elaborou um plano de fuga da capoeira. Ao fazer isto, reparou que a liberdade não estava tão longe como sempre imaginara.
  Dito e feito. No dia seguinte, assim que a sua dona abriu a porta para colocar a habitual refeição da manhã, que nesse dia era feijão cozido, a sua preferida, o frango atirou-se à senhora e começou a dar às asas, a gritar e a picá-la com o bico. A pobre senhora, surpreendida e limitada pelos problemas de saúde que lhe foram aparecendo com a idade, soltou um grito e caiu ao chão, sem se conseguir equilibrar com as dores adicionais que o jovem animal lhe causara. Gritou asneiras e palavrões de raiva e frustração, e chamou pelo marido o mais alto que conseguiu:
  — António! Anda ajudar-me, eu caí e um dos frangos fugiu! Amanda-lhe com a vassoura que está aí encostada à parede, a ver se ele volta!
  O velho senhor chegou a correr e não hesitou em pegar na vassoura e começar a perseguir o frango inocente e indefeso, que acabara de deixar a sua casa pela primeira vez na vida. O frango já tinha corrido metade do caminho até ao pequeno portão fechado de arame farpado, mas as suas patinhas não lhe permitiam atingir grandes velocidades e o dono aproximava-se de vassoura na mão, pronto a fazer com que o frango desse umas voltas valentes. Vendo que as suas esperanças estavam a acabar e que a dona ficara alertada de que ele queria fugir, o que diminuiria as hipóteses de ser bem sucedido numa segunda tentativa de escapatória, o frango ganhou coragem, acelerou o máximo que pôde e deu um salto alto como nunca antes dera. Bateu as asas desesperadamente, o que lhe deu a altura de que precisava para saltar o portão, que media aproximadamente um metro de altura. Só parou de as bater quando atingiu o chão do outro lado, e continuou a correr para fora de casa. O dono, atrapalhado e sem acreditar no que acabara de acontecer, tentou abrir o portão, mas o mundo parecia estar a favor daquele corajoso frango e o portão prendeu, não permitindo que o velho senhor o abrisse rapidamente. Isto deu tempo ao frango para voltar a olhar em frente e chegar ao segundo portão, maior do que o primeiro que ultrapassara. Enfiou as asas brancas entre os arames farpados ferrugentos e puxou com todas as forças que ainda tinha. Não estava habituado àquilo, e só esperava por um campo verde onde pudesse descansar e comer o almoço que substituiria aquele que lhe permitiu alcançar a liberdade. Surpreendentemente, o portão, que só estava encostado, abriu uma frecha e o frango escapou-se por ela o mais rapidamente que conseguiu. O dono, que conseguira finalmente abrir o portão, já só estava a dois metros dele, a segurar a vassoura na sua direção. O frango voltou a olhar para a frente e correu pela subida de terra acima, na ânsia que os donos desistissem dele. No entanto, escorregou numa pedra solta e agarrou-se com a asa alaranjada da ferrugem do portão que abrira a uma erva mais carnuda que lá se encontrava. Fez uma força enorme para se puxar para cima, e conseguiu apoiar rapidamente a pata numa outra pedra mais firme. O dono  estava já com as mãos à volta dele, a tentar agarrá-lo para o levar novamente para a capoeira, no momento em que o frango empurrou a pedra para baixo e saltou até ao passeio que se encontrava em frente e por cima da casa dos donos. Isto fez com que o senhor caísse de frente e ficasse apoiado no meio das ervas e das pedras, com os braços cruzados e a vassoura aos pés. O frango olhou para trás enquanto atravessava a estrada, ainda a correr, aparentemente sem movimentação. Quando, no momento em que o frango já estava a uns centímetros da tira central da estrada, onde estavam árvores plantadas e erva a crescer, juntamente com flores coloridas, um carro passou a alta velocidade e raspou-lhe as penas do rabo. O frango gritou e olhou para si. As suas queridas penas traseiras estavam queimadas e estragadas da fricção e faltava a maior, que fora arrancada pelo carro. Assim que olhou para o lado da estrada de onde acabara de sair, viu o dono a abanar a vassoura no ar e a gritar palavrões o mais alto que a sua voz lhe permitia. Decidiu atravessar para a outra margem, mas desta vez olhou antes de atravessar e correu de um lado ao outro da estrada.
  Depois manteve-se quieto, e sentou-se na beira do passeio, simplesmente a observar o novo mundo que nunca imaginara que existia por cima daquela casa. Uma estrada, carros coloridos a passar nela e pessoas a passear no passeio, que passavam perto dele e lhe lançavam olhares interrogativos e um tanto desconfiados. Uma mulher jovem, que aparentava estar na casa  dos trinta, passou mesmo ao lado dele, e o cão que ela passeava cheirou-o, curioso. O frango só não fugiu porque estavam a passar carros na estrada, e já tinha tomado consciência do perigo que aquilo significava para qualquer animal ou pessoa. Mal ela se foi embora, o frango olhou para a outra margem, e verificou que o dono parecia já ter desistido. Olhou à sua volta à procura de espaços verdes, e encontrou um completamente do seu agrado, mesmo ao lado da casa dos seus ex-donos. Ex-donos era uma maneira engraçada de dizer. Soava-lhe a liberdade eterna e independência, a poder viver como queria e como a Natureza mandava; como os gatos vadios e os pássaros, que passavam ali todos os dias: faziam o que queriam e andavam por onde bem entendiam. Eram livres. E provavelmente não davam tanto valor à liberdade que lhes era dada como aquele frango, que sabia perfeitamente o quão mau era viver confinado a um espaço de quinze metros quadrados para toda a vida. Mas agora aquele pesadelo acabara e considerava que tinha acordado num lindo dia de primavera. Seria uma viragem na vida daquele inocente frango. Era provavelmente o frango mais feliz de todo o mundo naquele momento.
  Decidiu então voltar a atravessar a estrada até meio para verificar se o dono não estava escondido à espera que ele voltasse. Como ele não parecia ter pensado em pregar uma partida ao seu frango que já não era seu, o frango atravessou o resto da estrada, sempre com cuidado e atento aos carros. Agora já não era de ninguém: queria ter a sua personalidade e ser ele mesmo para o resto da sua vida.
  Mas estava cheio de fome, pois não tinha comido a refeição da manhã. Então decidiu ver se havia algum feijão por ali no chão, pois de tanto que as galinhas esgravatavam deviam encontrar alguma comida no meio da terra, dos bichos e da erva verde e seca. Assim o frango decidiu imitar as galinhas e começou a esgravatar a terra à procura do feijão da dona.
  — Tem de andar por aqui, de certeza que existe aqui algum! - disse o frango para si mesmo, numa tentativa de se encorajar. Nunca tinha sentido a necessidade de procurar comida, e não sabia se estava a procurar da maneira certa ou no sítio certo.
  O sol subiu no céu e o frango continuava sem encontrar um único grão para comer. A fome estava cada vez maior, e as suas forças estavam fracas, pois desde o dia anterior que não comia nada, pois já não tinham comida na capoeira e ele não comeu quando a dona foi reabastecer, tudo pela sua liberdade. Começava a pensar se aquilo fora uma boa ideia. Se ia deprimir de qualquer maneira, então mais valia comer bem e viver o resto da sua vida na capoeira até ser vendido a uma pessoa qualquer contra a própria vontade, provavelmente para ser comido. De certeza de que se voltasse iria direitinho para a panela, a dona não arriscaria outra vez a esperar para o vender. E se não fosse, provavelmente não voltaria a conseguir fugir. Mais valia ficar ali, ao menos tinha hipóteses de acontecer um milagre e cair alguma comida do céu. Ou pelo menos aparecer alguma debaixo do chão… mas já estava ali há horas e começava a perder a esperança. Simplesmente decidiu continuar a procurar, afinal as coisas não podiam piorar. Estava livre, mas sem nada para comer. Os frangos estavam geneticamente adaptados a viver em cativeiro, mas com comida. Sem comida não há quem se adapte.
  Mais uma hora se passou, e a fome era tanta que a tentação de voltar começou a crescer com ela. Só queria uma boa refeição… Cada vez acreditava mais que aquilo era o pior. Mas mudou de opinião quando apareceu um gato a caminhar de forma sorrateira na sua direção. Ligeiramente agachado, estava escondido no meio da erva alta e meia seca devido à ausência de chuva nos últimos dias. Era preto e branco às manchas, com uma branca à volta de um dos olhos, e tinha um corpo de um gato composto e elegante. Também parecia muito ágil e determinado e, apesar de estar quase a esfregar o pêlo macio na terra, este mantinha-se impecável e sem ponta de sujidade. O frango voltou a olhar para si. As penas de trás estavam estragadas e acinzentadas devido ao carro que quase o atropelara e as asas alaranjadas e sujas pela ferrugem do portão. Naquele momento deu valor aos momentos em que as suas penas eram brancas como a neve, e ao quão macias ficavam quando a dona lhes fazia festas e mimos. Sentia pena em deixar a sua dona. Ela podia matá-los, mas sabia amar os animais e dar-lhes uma vida digna. Curta mas digna. Será que tinha melhorado a sua vida ou a sua decisão torná-la-ia uma luta constante pela sobrevivência, sem momentos de prazer ou sem amor? Esta questão tomara conta da sua cabeça, e só conseguiu focar-se a cem por cento na realidade quando o gato deu um salto veloz de metros de comprimento, com um ar ameaçador e as patas estendidas para a frente. O frango, assustado, fechou os olhos, protegeu a cabeça com as asas e gritou com todas as suas forças.
  — Por favor não me comas! Ainda sou muito jovem!
  Mas apenas ouviu um gemido ao seu lado, e decidiu olhar. O gato estava esticado rente ao chão, com um rato recém-morto entre as patas com as garras afiadas saídas a espetar o rato. Não parecia ter reparado no frango, e quando este gritou olhou para ele um tanto intrigado.
  — Tem calma, galinha, eu não te vou comer. — disse, e pegou no rato pelo rabo, colocando-o dentro da grande boca de uma só vez. Depois mastigou-o calmamente, tempo que o frango aproveitou para esclarecer as coisas.
  — Ah… pois, acontece que eu não sou uma galinha.
  — Ai não? Então o que és? — perguntou o gato sem lhe dirigir o olhar, e enquanto lambia as patas para as limpar dos restos do rato, que ainda o lambuzavam.
  — Sou um frango, e com muito orgulho. — afirmou o frango, tentando parecer confiante. Mas a fome que tinha não deixou que fosse muito convincente.
  — Ai és? Pois, mas aposto que não consegues fazer como eu fiz para caçar aquele rato. Viste? Era dos gordos…. Normalmente são os melhores, e também os que fogem menos…. Uma vez, apanhei um tão gordo, tão gordo, que me deu para duas refeições. Acreditas nisto? — contou o gato, acentuando a palavra “duas”. Reparou numa pata do rato na erva e comeu-a enquanto falava com a boca ainda cheia. Depois olhou para o frango todo sujo. — Tu não devias viver ali em baixo com os teus amigos?
  — Pois… acontece que eu tomei a decisão de fugir, pois tomei consciência de que a minha dona me queria comer.
  — Há quanto tempo fugiste? Vocês são fracotes, não se aguentam vivos nem dois dias fora da capoeira!
  — Fugi há umas horas… e estou a morrer de fome, ainda não encontrei um único grão no chão.
  — Andas a esgravatar a terra, frango idiota? Pensas que vai aparecer algum feijão por aí, como aqueles que eu vejo a tua dona cozinhar e pôr na capoeira?
  — E não vai?
  — Ainda por cima cozido! Aqui não cai comida do céu, e não há feijão cozido. Ela é que o coze. És mesmo ignorante, se não fosse eu para te safar…
  — Ajudas-me, gato? Por favor, há horas que não como nada…
  — Pode ser, também não me custa nada. O que comes?
  — Feijão…
  — Para além de feijão.
  — A minha dona dava-me farinha de milho, uns croquetes, couves, feijão,…
  — Milho, hã?… — disse o gato, pensativo. Refletiu por uns segundos enquanto caminhava para ao lado de uma planta na descida para a casa da dona do frango e depois continuou. — Conheço um campo de milho não muito longe daqui, podemos ir lá buscar algum.
  — A sério, vais ajudar-me?! — exclamou o frango, com os olhos radiantes. Seguia o gato para onde quer que ele fosse, pois sabia que ele podia ser aquele que o ajudaria a criar um novo estilo de vida.
  — Não agradeças. — disse o gato, ao mesmo tempo que afiava uma das unhas no tronco estreito da planta e a analisava para ver se estava suficientemente afiada. Depois olhou o frango com um sorriso. — Vamos?
  — Tudo pela comida! Isso se conseguir chegar lá…
  — Eu estou aqui, tem calma. Ou achas que ainda não passei fome?
  — Já?
  — Eu conto-te, mas vamos caminhando. — sugeriu o gato.